As mãos mirradas de Deus

sexta-feira, janeiro 22, 2010 1 comentários

“Deus tem também seu inferno, seu amor pelos homens”
F.W. Nietzsche

A infância me traz um terço de contas inumeráveis, escorregando entre as membranas dos meus dedos, embora muitos desacreditem que exista algo entre um dedo e outro, além de minúsculos abismos. Sou um anfíbio me alimentando de rochas e lavas frias.
Ainda sonho com aquele homem bizarro, do cheiro rude da velhice desprendendo devagar da sua pele cinza, o tempo transforma a carne tenra num laboratório de horrores. O homem grande das mãos mirradas... Olhava e não compreendia os desígnios de Deus. A geometria torta a conceber desejos gordos para concretudes magras. A menor distância de um ponto ao outro é uma curva. Suas mãos finas e pequenas sustentavam um neto corado e robusto. As dualidades são sempre bárbaras... Naquela época as crianças me traziam um sentimento ruim, um ódio inexplicável, em forma de espinhos, sabe aqueles espinhos que vivem entrando em nosso pé e precisam ser retirados com agulha fina? É, era um incomodo assim. Mesmo hoje não as quero bem, há uma rivalidade muda entre nós. Guerra fria. E toda vez que vejo uma, acho suas cabeças grandes, vazias e desproporcionais, como grandes campos minados. Strawberry Fields Forever. Tento despistar a curiosidade insana dos meus olhos, mas eles sempre acabam nas extremidades. Então, novamente tenho diante de mim, o homem das mãos mirradas... Alguém me grita:
- Lembra de mim?
Observo profundamente aqueles olhos azuis e tenho certeza que eles já fizeram parte do meu mundo. Mas onde, quando, em que circunstâncias? Aqueles olhos de um azul raro não pareciam pertencer aquele rosto: delicado, anguloso e tão perversamente angelical.
- Olha bem pra mim. E aí?
Pensei que ela bem poderia ser protagonista de um daqueles filmes antigos, preto e branco, nos quais todas as mulheres eram anjos intocáveis. Andróginos. E seus olhos... Tão fora de órbita, flutuando num universo há muito esquecido.
- É impossível que não se lembre! O Juninho, meu irmão e você...
Como poderia me esquecer? O meu primeiro amigo. Os olhos, era isso, eram os mesmos.
- Claro, como ele está?
- É uma longa história...Triste história.
Não ousei perguntar.Não queria saber. Eu sei muito bem viver de lembranças... E elas eram muitas e boas. Amávamos como dois seres antes da criação, antes do bem e do mal.
Reflito e minha imagem é um quadro alucinado de Edward Munch. Sigo a fome, abro cada curva do meu intestino e ele dá voltas e voltas em torno de mim, como uma roda da fortuna girando sobre o próprio eixo. No jardim crescem os baobás, se espremendo numa realidade limitada, num tempo oco, sem espaço.
Rumino mitologias, o homem grávido. Também gravitam seres no meu ventre, na contradição plena do meu membro ereto, masturbam-me, as mãos diabolicamente mirradas de Deus...

1 comentários:

  • lisa disse...

    Como sempre sua criatividade é seguida de palavras extremamente crueis e sujas (como um utero prestes a vomitar mais uma criação). E a beleza disso não pode de fato ser descrita através de palavras médias. Um misto de Clarice com Bukovski

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