A prosa poética dessa maravilhosa escritora é afiada, trás à tona dramas psicólogicos,
tumores da alma, dores concretas, sangrentas e estilhaços de uma mulher tão sensível que é
capaz de sentir alfinetadas do vento.
"Vê o que fizeste de mim, a santa mais pobre do museu, a da última sala, ao pé das latrinas, a da ferida negra como um olho debaixo do seio esquerdo.
Vê o que fizeste de mim, a mãe que devora as suas crias, a que traga as suas lágrimas e engorda, a que tem de abortar em cada lua, a que sangra todos os dias do ano.
Assim te vi, vertendo chumbo derretido nas orelhas inocentes, castrando bois, arrastando a tua açucena, o teu imaculado membro, no sangue dos matadouros. Disfarçado de mágico ou proxeneta na praça da Bastilha – Jules era como te chamavas nesse dia e os teus beijos fediam a fósforo e cebola. De general na Bolívia, de tanquista no Vietname, de eunuco na porta dos bordéis da praça México.
Formidável fantoche diante do painel de controlo; grand-chef da desgraça revolvendo catástrofes na imensa marmita celeste.
Vê o que fizeste de mim. Eis-me aqui pela tua mão nesta iniludível câmara de tortura, guiando-me com sangue e com gemidos, cega por obra e graça da tua divina baba.
Olha a minha pele de santa envelhecida a acompanhar o teu alento, olha o tambor estéril do meu ventre que só conhece o ritmo da angústia, o golpe surdo do teu ventre que faz silvar o prisioneiro, o feto, a mentira.
Escuta as trompetas do teu reino. Noé naufraga todas as manhãs, todo o mar é terrível, todo o sol é de gelo, todo o céu é de pedra.
Que mais queres de mim?
Queres que cega, irremediavelmente às escuras deixe de ser o lacrau no seu ninho, a tartaruga esfolada, a árvore sob o machado, a serpente sem pele, aquele que vende a sua mãe com o primeiro vagido, o que só é costas e nunca frente, o que tropeça sempre, o que nasce de joelhos, o viperino, o afortunado, o que enterrou as pernas e está vivo, o dono da outra bochecha, o que não sabe amar-se porque está sempre só.
Vê o que fizeste de mim.
Predestinado esterco, lama de olhos esvaziados.
A tua imagem no espelho da feira fala-me de uma terrível semelhança."
Blanca Leonor Varela Gonzáles (Lima, Peru, 10 de agosto de 1926 - 12 de março de 2009) foi uma poeta peruana que publicou obras inscritas no Movimento Surrealista e na chamada Geração de 50 da poesia peruana.
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