Morte no Subúrbio: conto em 6 atos

quinta-feira, março 17, 2011 1 comentários

Ato 1

Depois de três meses adiando, começo a réplica de Lucien Freud. Gosto de pintar durante a noite, as sombras deformam os objetos. Homem nu com um rato na mão. Essa tela me excita. Corpo sonolento, membro descansado. Vertigens. Mil coitos interrompidos. Espermas engarrafados. Água rasa. O rato estrangulado entre os dedos. Abro o zíper. Pau duro. Vejo a polpa branca das jabuticabas percorrendo e saciando o desejo do tronco. Encosto a ponta da língua. Amargo. Porra e vermelho carne escorrem pelos meus punhos em apuros.

Ato 2

Ela me convidou para sair. Éramos confidentes, embora apenas ela falasse por horas, não conhecia sobre nenhum assunto, no entanto, palpitava sobre todos. Era evidente, todo dia me devorava com o olho obsceno da bunda. Fingia não ver, todos viam, não tive como fugir, dissimulei interesse. Ninguém aceita que um homem não coma uma mulher e toda mulher sonha ser bem comida pelo macho que ela escolhe. Em casa, minha mãe perambula pelos cômodos, quer saber se voltarei para dormir. Talvez. Os corpos se saciam rapidamente, apenas o amor tem esse inconveniente de partilhar camas e noites. Tripas de anjos e meninos.

Ato 3

Enfio minha língua em seus lábios. Remexo por dentro dela. Tudo tão diverso. Não me contento. Há sinos repicando em seu útero fértil de puta sagrada. Todos os meus íntimos relógios – anti-horário. Desprezo seus seios, anseio materno. Coloco-a de quatro com força. Volto à infância. Sangue coagulado nos meus joelhos. Muro coberto de cacos de vidro. Os vitrais assumem os mais diversos disfarces. Caio trepando nas árvores. Esfíncter. Quintal de sonhos e merda. Levo-a para casa. Vejo uma triste ternura cambaleando em seus cílios.

Ato 4

Algo me dizia que ele sentia o mesmo que eu. A mesma dor, a mesma vontade de entrega. Quando estávamos perto Ele suava como um animal que traz do nascimento o aniquilamento inevitável da morte. Touros se debatendo nos matadouros. Caio. Não podia mais me enganar, era evidente, desde a primeira vez que o vi. Um anjo barroco do subúrbio. Eu precisava saber. Eu tinha que escutar da boca dele. E escutei: “Você tá louco porra, eu sou homem!!!! Gosto de mulher, sai pra lá bicha du caralho!”. O desafeto é monstruoso. Um peixe engolindo – estuprando o mar. Ventríloquos mudos.

Ato 5

Minha maior tortura foi confessar meus crimes aos pés encardidos do seu ouvido. Olhos de cão em agonia. Babas de raiva - hidrofobia. Não posso mais fingir, omitir o que sou para agradar os delírios de perfeição dos outros. Eu sinto tesão por homens. Reprimi por muito tempo essa vontade quase inata. Não dá mais. Eu me iludi com o Caio, mas isso não muda quase nada. Não altera muita coisa. Vou para o Bar da Lôca e faço muito sexo, sem falsos pudores, como sempre sonhei, sem mutilações. Enquanto como outros homens, penso no Caio. O amor é andrógino, um mar povoado de cavalos marinhos. Suas mãos, seus cascos, um resto de sol, cavalgam no meu sexo. Lembro-me o quanto era difícil espantar as moscas que se distraíam ao redor dos seus olhos de cavalo.

Ato 6

Não posso mais morar aqui. Vou embora. A penumbra agora ocupa o espaço vazio do quarto. A pouca luz que entra pela veneziana escapa pelo buraco da fechadura. Não há grande diferença entre jaulas e janelas. Iago. Iago. Repito exaustivamente até formar um nó cego na garganta. Espero o eco devolver uma imagem sinuosa de mim mesmo. A mala, as frutas esmagadas, o cachorro enterrando ossos. Os olhos da jabuticabeira encravados na minha carne gasta. Pego uma tela. Natureza morta. Hoje eu sei: a saudade é uma morte camuflada e morremos todos os dias na gordura solitária do ralo.

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