Coquetel Maiakovski - 2500 A.C. / † 2003 D.C.

terça-feira, janeiro 25, 2011 2 comentários



Poema de Akira Riber Junoro



Foi num caderno jornalístico que chegou a terrível notícia
[nem um clarim ou trombeta do fim que a acompanhasse.
Um desses periódicos ironicamente de palavras e conjunções e significados,
Que geralmente circulam nas quintas e sextas –
[exceto nos dias santos e demais feriados.
Sendo os remanescentes recolhidos por volta do sábado seguinte
(isso quando não atrasa a distribuição, claro!
Ou quando algum inconveniente dono de açougue
não recolhe as páginas velhas de jornais passados
a fim de embrulhar a carne vendida com notícias mortas.
Incapaz de perceber a ironia do próprio gesto, o açougueiro.)
Neste veículo conquistado pela liberdade de expressão,
estava expresso que a poesia fora proibida.
Não tentaram sequer rodear;
explicar a situação com palavras falsas e convincentes;
quisera que perseguissem apenas um gênero específico,
que se impusesse uma censura injusta, mas tolerável.
– poderiam arquitetar a ocorrência de mais uma ação terrorista, sempre o fizeram;
– uma guerra com fins pacíficos, benéficos, anestésicos, burocráticos...
Uma censura direcionada às obras d’algum ativista perigoso em específico.
Este não podendo ser meramente assassinado
sob o risco de tornar-se mártir do populacho,
Haveria de ter todos seus versos recolhidos e postos na ilegalidade
– seria obrigado a responder por crime imaginários e a sofrer torturas bem reais.
Teria sido uma perspectiva menos medonha do que a censura total,
[indiscriminada, compulsória...
Habituados como são os governantes em empanar a liberdade, ainda que disfarçadamente.
Não havia maneira de prever o que se daria:
Uma ação diferente, destemida, vem nos lembrar que se aproximam terríveis dias.
A notícia que os poderosos encomendaram,
Refutando as volições artísticas, fazendo uso da praticidade bruta,
valendo-se de palavras precisas e taxativas.
Era: “A POESIA ESTÁ DEFINITIVAMENTE PROIBIDA!”
Não até o próximo natal ou reveillon lustroso, de pombas e fogos às toneladas.
Tampouco até que a crise seja superada por um inovador e brilhante plano econômico.
Quisera que até a páscoa vindoura ou quando acabasse mais esta guerra,
[secasse a última gota de sangue,
[apodrecesse o derradeiro cadáver,
[migrasse a nuvem de abutres insatisfeitos;
[eles, à cata da mais argentária e horrenda iguaria.
A poesia fora banida com maior expressividade possível: a do silêncio.
A expressividade do terror em detrimento da expressividade do lírico.
DEFINITIVAMENTE – estava grifado sem maiores delongas.
“Mas por quê?”; Quis saber o poeta e foi imediatamente calado.



Mas este poeta não foi o único que reagiu.
A princípio as pessoas aceitaram, pois não levaram a sério.
Julgaram impossível proibir o poético, estabelecer limites, castrar a criatividade.
Porém quando fiscais passaram a vigiar os namoros nas praças, munidos do Estatuto Antipoesia,
com olhos vigilantes e ouvidos de raposa velha, vasculhando cada diálogo inocente
no intuito de detectar finalmente uma construção poética.
A prisão automaticamente declarada e as lágrimas inconsoláveis de uma possível namorada,
não seriam suficientes para demover os Agentes.
As aulas de composição proibidas em cada escola,
as crianças que não mais precisavam de imaginação.
As pessoas souberam que era sério.
E a partir de então não houve mais paz:
Telefonemas, missivas, cartões postais,
tudo colocado à disposição do cruel Estatuto Antipoesia;
um calhamaço de cinco páginas que podia ser resumido numa frase:
“Ao se comunicar, seja prático!”
E os mais sagazes Agentes da reação, perdiam horas inteiras lendo tudo,
obtendo a felicidade de encarcerar no mínimo algum’alma sonhadora.
Os mais fanáticos chegavam ao cúmulo de procurar estruturas poéticas
nas frases dispersas e condensadas dos telegramas.
E muitos cidadãos que optaram este meio, crendo assim estarem evitando a poesia
[e conseqüentemente o encarceramento
Acharam-se também presos sob a alcunha de CONCRETISTAS.

Um ou outro que estabelecendo comunicação própria,
[de códigos e imagens confusas,
Caçados foram um a um e declarados perigosíssimos SIMBOLISTAS.


A ação não tardou e organizada foi uma marcha, composta por poetas de todas as partes:
repentistas, eruditos, modernistas, clássicos, finalmente unidos.
O objetivo era a capital nacional e diante dos poderes institucionais,
[a passeata reivindicaria a volta da liberdade de expressão.
A marcha dos seis mil poetas teve início, a princípio um sucesso.
Percorreram milhares de quilômetros sem encontrar resistência, mas sim novas adesões.
Levando um canto multitudinário, tecido em versos de bardos do passado.
Drummond, Baudelaire, Neruda,
Camões, Dante, Shakespeare,
Whitman, Pessoa, Safo
A população, ainda que veladamente, apoiou o ato.
Outros mais ousados cobriram a passagem dos manifestantes com ramos de oliveira.
Às portas da capital, todos os seis mil poetas em êxtase
[num domingo que sabia a liberdade
Às portas como Aníbal num velho verso latino.
Tiveram a vitória como certa, lutariam sem qualquer outra arma que não fosse o Verbo.
Só que às portas do palácio presidencial, dez mil soldados armados
Abriram fogo sem dizer uma palavra, nem mesmo “fogo!”
Uma passeata pacífica dizimada cruelmente, entre páginas cobertas por lirismo e sangue.
Sangrento domingo, a história se repetia.
Os soldados não aguardaram sequer que os seis mil poetas abaixassem a pena,
que erguessem as mãos e esperassem a paz dos vencidos.
Amantes vigiados, um mundo mais triste.
Montanhas de livros e cadáveres alimentando uma fogueira colossal
(que jamais se extinguia)

Como o caso daquele que surpreendido com a obra completa de Bandeira,
conseguiu se safar afirmando que as poesias eram para consumo próprio.
(preso foi, mas não morto)
Nem tanta sorte teve aquele, que portando cinco volumes de As Flores do Mal,
condenou-se como membro do milionário e ilegalíssimo tráfico de poesia,
terminando seus dias numa alcova cruel, cheirando a tifo, dejetos e urina.



Numa manhã Joselina saiu de casa, tomando a direção do onipotente trabalho.
Era empregada de um restaurante que por medo de represálias,
decidira abolir a sopa de letrinhas do cardápio
e mais posteriormente o próprio cardápio.
Mas não só nisso os Agentes governamentais afetaram Joselina:
ela fora uma das pessoas atingidas pela ditadura do Estatuto Antipoesia.
Seu namorado que jamais lera um livro,
seu namorado um medíocre apaixonado, que costumava comparar Joselina à luz do dia,
fora detido pela comparação e acusado sumariamente de praticar poesia
[e nunca mais fora visto com ou sem vida.
Joselina, impotente, quê poderia fazer?
Tornou-se, como todos, uma pessoa mais deprimida, reservada.
Como todos que haviam decidido não conversar mais que o suficiente,
Por receio de que expressassem involuntariamente
hipérboles, antíteses, metáforas.
O medo fora tamanho, o terror tão intenso,
que os velhos conhecidos já não se cumprimentavam.
Joselina que nunca fora bela, ironicamente perdera o namorado
por ele um dia ter achado
Que ela era uma musa.

Naquela manhã, contudo, em que Joselina ia para o trabalho
ao dobrar a terceira esquina,
deparou-se com uma reunião de populares, olhando para o chão algo assombrados.
Joselina demorou a perceber, com seu raciocínio sempre lento e comedido,
Que no asfalto da avenida, alguém escrevera algo bem mais desafiador que um palavrão:
Uma poesia.
Quem havia sido?
Ninguém vira, ninguém ouvira, ninguém sabia.
Quando os Agentes chegaram, todos foram interrogados.
Alguns, torturados. Outros até foram mortos.
Ninguém falou nada. Ninguém sabia a verdade de fato.
Ninguém sabia o fato da verdade.
A poesia desafiadora no asfalto inaugurara a ação dos Poético-terroristas:
a irmandade de guerrilheiros culturais que reivindicou a autoria da poesia no asfalto.
Joselina, com sua pouca educação, jamais entendera o significado dos versos.
Achou-os algo tolos, algo sem sentido.
Mas dentro dela uma coisa que não sabia dizer
[inquestionavelmente ficou mais leve e livre.

A seguir foram garrafas que despedaçaram vidraças,
lançadas por seres ignotos na tensa madrugada citadina.
Garrafas que na heróica resistência soviética contra os nazistas
haviam servido para fabricar os consagrados coquetéis molotovs,
eram empregadas agora numa arma mil vezes mais terrível e letal:
o assim chamado coquetel Maiakovski.
Composto basicamente de uma garrafa vazia de bebida qualquer.
Se uísque, vodca ou até Coca-cola, pouco importava.
Pegava-se a citada garrafa, enrolava-se uma poesia
[e com ela recheava-se o vidro
Em seguida atirava-se a garrafa contra janelas de civis e militares,
propagando-se o indomável vírus do lirismo.

O grupo dos Poético-terroristas não satisfeito,
promoveu uma ação que beirava a insanidade:
Seqüestrou um dos membros do alto-escalão do governo,
exigindo como resgate a publicação imediata
nos jornais que haviam sobrevivido à censura total,
do Manifesto da Poesia Marginal.

Assim foi feito e a resistência cresceu.
Sempre com retaliações do governo, sempre com muitas prisões, desaparecimentos e mortes.
Mas sempre com a indignação popular, a perseverança da Vontade e a audácia da Potência,
dispostas a provar, sob todos os custos, todos sacrifícios possíveis,
além da coragem e da covardia
Que a pena é mais forte que a espada.
E que não há exército que cale a Poesia.

(Akira Riber Junoro. Coquetel Maiakovski.)

2 comentários:

  • Caca disse...

    Lisa, você tem o condão de me fazer matar a saudade de meus tempos de militância. Acho que nunca mais vão voltar. Não por indisponibilidde ou indisposição, mas por falta de companhia.

    Você conhece um texto meu chamado "aos meus antigos companheiros idealistas?" lá está expresso o meu sentimento.

    Esse poema é entre lindo, maravilhoso e o mais alto que houver na escala gramatical e lexica depois de maravilhoso. rsrs.

    Abração. paz e bem.

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