POESIA E REALIDADE

terça-feira, março 15, 2011 2 comentários
A maioria dos poetas que já tive oportunidade de ler suas biografias ou depoimentos não gosta muito que seus poemas sejam interpretados. E eu acho que estão cobertos de razão. Poesia pode ser como disse o Mário Quintana: “Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente.” Pensando nisso e naquilo que a minha companheira me falou outro dia vindo do salão de beleza injuriada com o que ouviu lá acerca de “estar por dentro das coisas”, resolvi pedir licença aos poetas e vou interpretar um poema que me leu. Primeiro vou explicar: perguntada sobre personagens de tais ou quais programas de TV ela disse desconhecer, pois não costuma muito assistir à programação. E ouviu o seguinte desaforo:
- Em que mundo você vive, minha querida? Está por fora de tudo! (sic)

Pois bem: é a isso que somos encaminhados aqui, ali e acolá. Temos que comprar tais objetos porque são modernos, temos que usar tais roupas, perfumes, calçados porque todo mundo usa. Temos que assistir ao que todo mundo assiste, temos que rezar no credo de nossa turma a fim de não sermos rejeitados no círculo de ralações. Temos que assistir a tal filme porque ganhou ou concorre ao Oscar. Temos que ler o último best seller para parecer culto e de bem com a onda que leva todo mundo para o mesmo lugar: o lugar comum. Ah, e o seu celular não tem blutufe? Que pessoa atrasada!

Daí que, lendo o CANTICO NEGRO, do José Régio, solicito que do céu ou onde quer que esteja me conceda esse beneplácito da interpretação pois acho que esse poema me leu. Mas aí, na hora em que resolvi interpretar, vi que ele parece ter me colocado palavras na boca, agilidade nos dedos, ou o que seja, e fala diretamente por mim, sem precisar por nem tirar absolutamente nada.

Só me resta acrescentar nesse rasgo de amargura, que a intolerância que tenho visto por aí contra gente que tem ideias próprias é filha (malcriada) da interpretação do mundo.Eu também amo é o longe e a miragem.

Cântico Negro (José Régio)

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o longe e a miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

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